sábado, 21 de setembro de 2013

CONTO #5 - Crescer e Involuir

Crescer e involuir

Olá, meu querido diário! Sinto que essa talvez seja a última vez que escrevo meus sentimentos a você. Foram tantos anos de desabafo, de alívio, de consolo! Sem você não sei o que eu seria. Para poder raciocinar melhor, tentarei resumir nessas próximas linhas minha angústia desde o princípio:
Tudo começou quando eu era apenas uma criança. Me sentia livre para imaginar, para brincar, para pensar e para sonhar com meu futuro. Entretanto, alguma coisa estava errada. Suspeitava que algo estivesse errado com meu corpo, mas tinha medo de compartilhar com meus pais o que sentia. Meus dedos teimavam em desobedecer-me, como se estivessem ganhando vida própria. Sentia-os duros, enferrujados. Com muita luta prestavam-se a responder meus comandos. Guardei isso por muitos anos – e aprendi a fingir por causa disso – até que não achei outra solução senão me abrir com os adultos.
O mais estranho foi o diagnóstico que recebi. Eu tinha longos parafusos no lugar dos ossos dos dedos! E meus pais se alegraram com isso! Diziam-me que estava tudo bem e que já era tempo daquilo acontecer. Como assim estava tudo bem? Não eram eles que sentiam as dores do metal a enrijecer e dilacerar a carne em volta todas as vezes que precisava usar meus dedos. Passei a achar que eles haviam enlouquecido; porém celebravam o momento com largos sorrisos.
A cada ano os sintomas pioravam. Logo minhas mãos e meus braços estavam comprometidos. Pelos exames eu conseguia ver as ligas metálicas substituindo os ossos, tal qual um câncer cibernético. Eu queria meu corpo de volta! Brincar já era um fardo e minhas dores me impediam de sonhar. Imagine, meu querido diário, como minha adolescência foi complicada.
Diante de minhas reclamações, minha mãe apenas dizia que tudo ficaria bem e que estava intercedendo por mim perante o deus de sua religião. Não estava tudo bem! Eu queria entender o que era estar tudo bem! Sempre fui questionadora e curiosa. Li muitos livros e desenvolvi um senso crítico precoce. Isso incomodava meus pais, mas jamais os impediu de continuar a me catequizar. Mesmo que minhas capacidades mentais me levassem a criticar tudo à minha volta, ainda sentia muito amor pela minha família. Eu não conseguia entender como meus pais podiam acreditar nas fantasias religiosas que tentavam empurrar pela minha garganta abaixo. Evitei entrar em discussões após perceber o quanto elas os abatiam. Obedecia suas ordens como uma boa filha. Entretanto, o pior estava apenas por vir.
Minhas pernas ficaram geladas. Ao toque de meus punhos ouvia-se o som do metal que revestia meus membros por completo estalando. Durante esse tempo, desenvolvi o hábito de assistir aos jornais com meu pai e, enquanto contemplava sua total apatia diante das notícias, meu coração se indignava. Como podia nosso país aceitar tamanha corrupção? Por que o povo não fazia nada?  O roubo, a pilantragem, o desrespeito às leis, o sarcasmo dos poderosos e a injustiça eram como um tapa na minha cara e pareciam não produzir nenhum efeito em meu pai. Ele apenas dizia, vez ou outra:
- Eita, Brasil! – e dava aquele sorrisinho de canto de boca.
Será que estou louca, querido diário? Minha doença me domina lentamente enquanto sinto que minha consciência se afoga em um lamaçal de hipocrisia. Quem dera eu tivesse forças para lutar. Tudo era muito bonito nas canções, na literatura, na arte. Porém, na vida real, todos pareciam conformados, obedientes. Minha juventude remanescente impedia que meus órgãos fossem transformados, tal qual o resto de meu corpo. O mais incrível é que tudo parecia igual em minha imagem refletida no espelho. Era a mesma Adélia de sempre por fora, mesmo que robotizada por dentro.
Nas últimas semanas, tive o desprazer de visualizar meus novos exames. Rins, estômago, pulmão, coração e tudo mais estavam diferentes. Eram máquinas intrincadas, sofisticadas, alterando minhas emoções. Eu, que preferia subir em árvores e me deliciar com frutas fresquinhas, agora me empanturrava de fast food. Eram refrigerantes, doces, aparelhos de celular novinhos, tablets, roupas chiques, joias; Passei a buscar todas essas efemeridades com uma sede incontrolável. Inconformada com a falta de recursos de meus pais, eu apelava para bicos eventuais a fim de saciar minha fome de consumo. Não sinto mais emoções como antigamente, apenas as batidas eletrônicas deste novo coração. Minha personalidade se perde na banda larga desse sinal wi-fi da realidade à minha volta. Pelo andamento da carruagem, sinto que morrerei em breve.
Não consigo mais refletir. Não tenho mais simpatia pelos oprimidos. Por mais que eu tente, minhas críticas acabam por concordar com a maioria. Estou com medo... estou desaparecendo... diário... por favor, não me abandone!...
Eu... Err... tbakxhjbcahi...
...
Error – 404
...
Consciência não encontrada.
...
Instalando novo software.
...
Instalação concluída com sucesso!
...

Olá, querido diário! Sou eu, Adélia (que nome horroroso!). Graças a Deus está tudo bem! Logo mais vou ao culto com meus pais. Desisti de fazer faculdade, pois não nasci para estudar. Estou super feliz! Vivo em um país maravilhoso e tenho tudo que quero. Se não tenho, vou atrás, custe o que custar! Afinal, tenho meu pai para comprar o que quero – ou algum namoradinho para pagar a conta. Adoro você, diário, e vou me despedir agora porque estou eufórica e tenho muito que fazer. No horário do jornal nos vemos de novo, pois não suporto aquela baboseira. Prefiro minhas séries e meus ídolos! Kisses, bye bye! :)

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