Crescer e involuir
Olá, meu querido diário! Sinto que essa talvez seja a última
vez que escrevo meus sentimentos a você. Foram tantos anos de desabafo, de alívio,
de consolo! Sem você não sei o que eu seria. Para poder raciocinar melhor,
tentarei resumir nessas próximas linhas minha angústia desde o princípio:
Tudo começou quando eu era apenas uma criança. Me
sentia livre para imaginar, para brincar, para pensar e para sonhar com meu
futuro. Entretanto, alguma coisa estava errada. Suspeitava que algo estivesse
errado com meu corpo, mas tinha medo de compartilhar com meus pais o que sentia.
Meus dedos teimavam em desobedecer-me, como se estivessem ganhando vida própria.
Sentia-os duros, enferrujados. Com muita luta prestavam-se a responder meus
comandos. Guardei isso por muitos anos – e aprendi a fingir por causa disso –
até que não achei outra solução senão me abrir com os adultos.
O mais estranho foi o diagnóstico que recebi. Eu tinha
longos parafusos no lugar dos ossos dos dedos! E meus pais se alegraram com
isso! Diziam-me que estava tudo bem e que já era tempo daquilo acontecer. Como
assim estava tudo bem? Não eram eles que sentiam as dores do metal a enrijecer
e dilacerar a carne em volta todas as vezes que precisava usar meus dedos.
Passei a achar que eles haviam enlouquecido; porém celebravam o momento com
largos sorrisos.
A cada ano os sintomas pioravam. Logo minhas mãos e
meus braços estavam comprometidos. Pelos exames eu conseguia ver as ligas
metálicas substituindo os ossos, tal qual um câncer cibernético. Eu queria meu
corpo de volta! Brincar já era um fardo e minhas dores me impediam de sonhar. Imagine,
meu querido diário, como minha adolescência foi complicada.
Diante de minhas reclamações, minha mãe apenas dizia
que tudo ficaria bem e que estava intercedendo por mim perante o deus de sua
religião. Não estava tudo bem! Eu queria entender o que era estar tudo bem! Sempre
fui questionadora e curiosa. Li muitos livros e desenvolvi um senso crítico
precoce. Isso incomodava meus pais, mas jamais os impediu de continuar a me
catequizar. Mesmo que minhas capacidades mentais me levassem a criticar tudo à
minha volta, ainda sentia muito amor pela minha família. Eu não conseguia
entender como meus pais podiam acreditar nas fantasias religiosas que tentavam
empurrar pela minha garganta abaixo. Evitei entrar em discussões após perceber
o quanto elas os abatiam. Obedecia suas ordens como uma boa filha. Entretanto,
o pior estava apenas por vir.
Minhas pernas ficaram geladas. Ao toque de meus punhos
ouvia-se o som do metal que revestia meus membros por completo estalando.
Durante esse tempo, desenvolvi o hábito de assistir aos jornais com meu pai e,
enquanto contemplava sua total apatia diante das notícias, meu coração se
indignava. Como podia nosso país aceitar tamanha corrupção? Por que o povo não
fazia nada? O roubo, a pilantragem, o
desrespeito às leis, o sarcasmo dos poderosos e a injustiça eram como um tapa
na minha cara e pareciam não produzir nenhum efeito em meu pai. Ele apenas
dizia, vez ou outra:
- Eita, Brasil! – e dava aquele sorrisinho de canto de
boca.
Será que estou louca, querido diário? Minha doença me
domina lentamente enquanto sinto que minha consciência se afoga em um lamaçal
de hipocrisia. Quem dera eu tivesse forças para lutar. Tudo era muito bonito
nas canções, na literatura, na arte. Porém, na vida real, todos pareciam
conformados, obedientes. Minha juventude remanescente impedia que meus órgãos
fossem transformados, tal qual o resto de meu corpo. O mais incrível é que tudo
parecia igual em minha imagem refletida no espelho. Era a mesma Adélia de
sempre por fora, mesmo que robotizada por dentro.
Nas últimas semanas, tive o desprazer de visualizar
meus novos exames. Rins, estômago, pulmão, coração e tudo mais estavam
diferentes. Eram máquinas intrincadas, sofisticadas, alterando minhas emoções.
Eu, que preferia subir em árvores e me deliciar com frutas fresquinhas, agora
me empanturrava de fast food. Eram
refrigerantes, doces, aparelhos de celular novinhos, tablets, roupas chiques, joias; Passei a buscar todas essas
efemeridades com uma sede incontrolável. Inconformada com a falta de recursos
de meus pais, eu apelava para bicos eventuais a fim de saciar minha fome de
consumo. Não sinto mais emoções como antigamente, apenas as batidas eletrônicas
deste novo coração. Minha personalidade se perde na banda larga desse sinal wi-fi da realidade à minha volta. Pelo andamento da carruagem, sinto que
morrerei em breve.
Não consigo mais refletir. Não tenho mais simpatia
pelos oprimidos. Por mais que eu tente, minhas críticas acabam por concordar
com a maioria. Estou com medo... estou desaparecendo... diário... por favor,
não me abandone!...
Eu... Err... tbakxhjbcahi...
...
Error – 404
...
Consciência não encontrada.
...
Instalando novo software.
...
Instalação concluída com sucesso!
...
Olá, querido diário! Sou eu, Adélia (que nome
horroroso!). Graças a Deus está tudo bem! Logo mais vou ao culto com meus pais.
Desisti de fazer faculdade, pois não nasci para estudar. Estou super feliz!
Vivo em um país maravilhoso e tenho tudo que quero. Se não tenho, vou atrás,
custe o que custar! Afinal, tenho meu pai para comprar o que quero – ou algum
namoradinho para pagar a conta. Adoro você, diário, e vou me despedir agora
porque estou eufórica e tenho muito que fazer. No horário do jornal nos vemos
de novo, pois não suporto aquela baboseira. Prefiro minhas séries e meus
ídolos! Kisses, bye bye! :)