sexta-feira, 9 de agosto de 2013

CONTO #4 - Não é mais uma história de vampiros e lobisomens

NÃO É MAIS UMA HISTÓRIA DE VAMPIROS E LOBISOMENS

A convenção milenar aconteceu à meia noite; pois esse é o melhor horário para vampiros e lobisomens.  Não era uma festa ou algo o tipo. Era uma tentativa de conciliação. Imagine só: Vampiros e lobisomens estavam prestes a assinar um acordo lendário que traria a paz eterna a todos os seus membros de uma vez por todas! Apesar de esses encontros serem realizados a cada mil anos, as lembranças do último – e, diga-se de passagem, mal sucedido - ainda permaneciam vivas nas mentes de muitos ali.
Acreditem; o lugar escolhido para a convenção era o Rio de Janeiro! O Brasil estava com tudo mesmo! A terra da Copa e das Olimpíadas agora receberia o alto escalão da Transilvânia. Porém, era tudo muito secreto. Nem mesmo as autoridades brasileiras sabiam do evento. Mesmo assim, tudo era cheio de pompa. Até o Cristo Redentor fazia parte da paisagem!
Mas vamos ao que interessa; a reunião estava esplêndida. Todos os lobisomens vieram desta vez. Dizem as más línguas (dos vampiros) que até banho e tosa eles fizeram. O mais antigo, Licaão, estava sentado ao lado do ilustre conde Drácula. Nem presas tinha mais. Estava decrépito, contudo olhava com saliência para a enfermeira particular do conde. Queria uivar diante daquele traseiro, mas nem forças para isso tinha mais.
Emburrado mesmo estava Lestat de Lioncourt. Repetia para si mesmo: “Eu quero interferir nas coisas, fazer as coisas acontecerem!”, mas pouco havia o que fazer ali. Foi consolado pelo horroroso Nosferatu. Que cara feio era aquele!
Na ala dos licantropos era possível ver lobos para todos os gostos: Versipélios, Volkodlákes, Werewolves, Dracopyres, Óborotens, Hamtammres, Loup-garous, Arbac-apuhques, Lobisomens brasileiros e até mesmo aquele novinho que ficara famoso no cinema. Já na ala dos vampiros, existiam sanguessugas de todas as partes do mundo, sempre bem tratados por nosso anfitrião Bento carneiro. Apenas aquele casal famosinho – isso mesmo, aquele que brilhava como purpurina – quis assistir a tudo de um camarote VIP. Era uma cena deveras pitoresca de se ver.
Após o show da cantora Natasha, que estava acompanhada de seu marido Angel, um stand-up de Astromar Junqueira fez a todos darem boas gargalhadas. Tudo estava pronto para a assinatura do tratado de paz que seria celebrado com as assinaturas de dois representantes legítimos dos clãs. Um lobo muito distinto de nome Lawrence Talbot representaria os licantropos. Para assinar em nome dos vampiros ergueu-se um pacato médico chamado Carlisle. O silêncio era geral.
Segurando a pena (claro, deve-se ter classe nessas horas), o jovem lobisomem pensou por alguns segundos. Aquele ato mudaria a história para sempre. Era muita responsabilidade para um único lobo. Olhava nos olhos de seu porvir aliado e refletia. Tudo acabaria ali! Não mais guerras, ou lutas, ou discussões – seria um eterno mar de rosas.
“Nem ao menos um motivo para esganar um dentuço desses” – considerava Talbot. Era o início de uma era em que lobisomens e vampiros andariam de mãos dadas, cantarolando e atirando flores para o céu. Tudo bem melodramático. Quase uma afronta.
Após muito refletir, um leve sorriso foi esboçado no rosto de Talbot. Imediatamente traduzido e concordado por Carlisle. Em uma breve troca de olhares, ambos sabiam que uma existência sem a adrenalina da inimizade os condenaria a um paraíso forçado. Num ato de total desrespeito – graças aos deuses da noite -  o jovem lobisomem rasgou o acordo.

A plateia suspirou, atônita. Diante do gesto de confirmação de Carlisle, ambos deram um ultimo sorriso. O que se seguiu foi uma luta daquelas, digna de cinema! Mais uma vez o acordo havia ido por água abaixo e, para alegria de lobisomens e vampiros (e nossa, eu diria), o conflito continuaria. E viva a ficção!

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

CONTO #3 - A Breve Vida de Stela

A BREVE VIDA DE STELA

         Quando tento me lembrar do nascimento de Stela, não consigo achar nenhuma evidência de sobrenaturalidade. Apenas tragédia. Mas afinal, nascer não é um milagre? Foi em uma noite tenebrosa, varrida por uma tempestade, que ela nasceu. Não eram apenas os céus que se turbavam. Ali naquele pequeno hospital de interior estava uma família sem nenhum recurso. Nenhuma esperança de criar mais uma filha. Os pais dividiam-se entre a alegria de vislumbrar aqueles lindos olhinhos escuros e a angústia de retornar para a casinha de taipa e constatar que a comida acabou.
            Entendo a reação deles. Eu, que havia terminado meus estudos há pouco tempo e estava vivendo o sonho do primeiro emprego como enfermeira, jamais negaria cuidar daquela pequena princesa. Era considerada por minhas amigas como uma verdadeira “manteiga”. Com a face banhada em lágrimas, a pobre mãe fez a proposta:
            - Minha filha... Cuide de minha filha! Não posso dar a ela um futuro. Por caridade, fique com ela. Ajude-me...
            Casos assim acontecem com certa frequência. Mas nunca havia sido tão perto de mim, tão pessoal. Confesso que fiquei encantada pelos olhos de Stela, que naquele momento nem nome tinha. Foi tudo muito rápido. Em questão de horas estava eu, chorando, no pátio do hospital, responsável por uma vida tão frágil. Mesmo naquela situação de desespero, dei-lhe o nome de Stela.
            - Seus olhinhos são reluzentes! É o único brilho desta noite triste. Tal qual uma linda estrela. Minha pequenina estrela.
            Nunca mais encontrei aquela família. Despediram-se sem olhar para trás, vagando pelas ruas úmidas da cidade. Nem calçados aquela mãe tinha. Fiz questão de lhe dar os meus; bem como todo o dinheiro que tinha na bolsa. Éramos eu, Stela, a cidade e uma vida pela frente. Pensando bem, éramos apenas eu e Stela.
            Aquela garotinha me concedia certo contentamento que em nenhum outro lugar encontrava. Vivi meus dias a me dedicar a ela. Participei de cada fase de seu crescimento e esqueci até mesmo de mim mesma. O mais intrigante era a personalidade de Stela. Sempre muito madura para sua idade. Sempre introspectiva, observadora, incomodada. Seus comentários se tornavam cada vez mais profundos e acertados sobre tudo que observava. Não foram poucas vezes que ouvi de amigos que se tratava de uma “garota muito inteligente; oxalá superdotada”.
            E era exatamente o que me foi constatado pelos exames médicos e psicológicos. Alguma coisa deveria estar errada. De tão altos, os resultados dos testes chegavam a ser absurdos. Nada que eu já não sabia. Era minha adorável princesa, independente de qualquer resultado científico.
            Porém, o que mais me desconcertava era a forma como Stela lia a vida. Isso mesmo! Ela lia tudo a sua volta. Dizia-me: “Mamãe, posso ler tudo o que está a minha volta!”. Tal habilidade lhe trazia muita tristeza. Era como se o mundo estivesse disponível em um código compreensível para ela e oculto para nós. Cresceu quieta, meditativa, sempre triste. Deus sabe o quanto tentei animá-la! Em muitas ocasiões recebia a mesma resposta:
            - Como poderia ficar feliz com tanto caos e tristeza a minha volta?
            Consequentemente, ela não aguentou viver por muito tempo. Portanto, como tributo ao dom que recebi de poder participar de sua breve passagem por aqui, tentarei contar as principais impressões que ela teve durante suas caminhadas incertas. Pelo menos aquelas das quais me recordo melhor. Acredito que minha pequena princesa era de outro lugar. Era uma verdadeira estrela que desceu aos meus braços naquela noite cinzenta.
            Em uma manhã de sol, caminhávamos para o parque. Stela olhou para cima e disse:
            - Mamãe, a fragilidade da vida nesse planeta é absurda! Chega a ser pavoroso como a humanidade chegou até aqui. Somos pedacinhos perdidos de matéria espalhada e ainda nos orgulhamos de alguma superioridade. Se cada um soubesse o quanto custou para o universo se desenvolver da forma como está, teríamos outra forma de civilização. Ninguém trataria o outro com desprezo pelas suas escolhas pessoais, mesmo que fossem ideológicas, religiosas, comportamentais ou de qualquer outro tipo. Tudo o que vejo são pessoas lutando umas com as outras por motivos banais. Precisamos olhar mais para o universo.
            Ao passar pelas construções de nossa cidade, Stela comentava:
            - Quanta opulência! Que necessidade cega de se destacar. A senhora consegue entender o quanto as pessoas tentam se sentir superiores às outras? Tudo isso para poder garantir sua reprodução. Pessoas trabalham, se exercitam, ganham dinheiro, adquirem coisas, cuidam da aparência, ganham cargos, status, estudam, se esforçam... E por fim, tudo isso é para procriar com melhores chances de sobrevivência. A humanidade é um grande rebanho de animais lutando dia e noite pela continuação de sua espécie, sem nenhum tipo de consideração pelo mais fraco. Tudo gira em torno disso: a economia, a religião, o proselitismo, o patriotismo, o direito, a política, e qualquer ação humana.
            Confesso que a maioria de seus comentários me era incompreensível. Talvez aqueles que lerem o que escrevo entenderão melhor. Gostaria de dizer que amava muito minha filha. Tenho certeza que hoje ela está lá em cima, de onde veio, brilhando no espaço. Nas noites em que me sinto mais solitária, é para lá que olho, na esperança de vê-la novamente. Sempre me lembrando de suas últimas palavras:
            - A vida é um pequeno milagre, mamãe. Não perca tempo com fantasias criadas pelo medo. Viva sua vida plenamente. Não permita que outros te dominem com suas linguagens abusivas. Cada um é único nesse planeta. Cheguei à conclusão de que não existe nada além do talento humano nessa vida. Se for para somar esforços conjuntos pela evolução da humanidade, que isso seja feito sem mesquinharia nem dominação. Mesmo que eu não consiga ver algum futuro para nossa civilização, sei que qualquer esperança repousa sobre a tolerância e o conhecimento. Eu te amo, minha mamãe. Obrigada por ser a minha estrela também!

            E Stela fechou seus olhos depois de ter aberto os meus.