sexta-feira, 26 de julho de 2013

CONTO #2 - Metamorfose

Metamorfose

                Acácio acordou diferente naquela manhã fria e cinzenta. Seus olhos ainda estavam inchados pelas lágrimas que vertera durante a noite. Porém estava determinado: Hoje, matarei minha mãe!
                Você, amigo leitor, deve estar sentindo repulsa aos sentimentos daquele jovem. Eu teria a mesma reação. Mas, convenhamos; aquela velha precisava morrer! Deitada na mesma cama de Acácio, logo acordou e o encarava com olhos pretos, profundos, arrebatadores. Um arrepio percorreu-lhe a espinha e o fez lembrar que ela ainda estava lá. Vigiando.
                Certamente a presença dela lhe trazia conforto. Jamais se sentira sozinho ou sem respostas. Quando algo não lhe fazia sentido, a velha sempre dava os melhores pitacos. Ela detestava qualquer tipo de tecnologia, pois se considerava uma senhora de “um livro só”. O menino jamais ousou questionar, pois as respostas sempre lhe eram apresentadas como sagradas por ela. Não havia tempo para críticas, reflexões ou tristeza: Nas horas mais escuras, a velha lhe estendia os braços e lhe fazia ninar. Como ele amava aquela senhora! Mas estava resoluto em matá-la.
                Saiu da cama com pressa. Vestiu sua melhor roupa e, como sempre fazia, convidou-a para passear. Nem pensou em comer seu desjejum. A fome se lhe passou despercebida dado tamanha ansiedade que tinha em por fim ao seu sofrimento. A velha paramentou-se com seus tecidos escuros, esfarrapados, que a faziam parecer-se com um fantasma. Portava um enorme crucifixo de metal que se destacava sobre os vestidos pesados. Não cansava de cuidar de seu filho. Fê-lo rezar ao seu lado e ler o livro sagrado. Mas naquela manhã monocromática, as palavras escapavam pela boca do jovem sem nenhum comprometimento.
                Ambos deixaram a velha casa de mãos dadas. Apoiando-se sobre o ombro de seu filho, aquela senhora fitava os transeuntes com desconfiança. Conforme caminhavam até seu destino, afloravam os mais diversos sentimentos por onde passavam. As crianças que jogavam sua bola na rua assustaram-se ao vê-la. Respeitaram sua passagem com pavor – esqueceram até mesmo da alegria do jogo. Os rapazes nem olhavam direito para ela, apesar de seus gritos os incomodarem com duras repreensões. Os idosos sentiam orgulho do jovem Acácio, saudando-o com alegria. Contudo seus semblantes pesavam cansados, expressão de um fardo incontestado.  Os sacerdotes da pequena igreja lhes sorriam, rangendo os dentes, esfomeados. Aquela visão fez o jovem ter mais certeza do que faria. Ninguém ficava indiferente diante da velha.
                Enfim chegaram às portas da Biblioteca municipal. Em sua mente, Acácio sabia que o único lugar discreto para dar fim àquela mulher seria os fundos do prédio. Era calmo e abandonado – perfeito para o assassinato. O mesmo lugar que passara suas últimas tardes lendo.
Segurou gentilmente as mãos da velha e lhe ajudou a subir as escadarias. Ao entrarem, passaram despercebidos dos leitores. Todos estavam concentrados em suas leituras. Muitos estavam acompanhados de suas mães ou pais, mas poucos estavam sozinhos. As mães olharam para a velha e sentiram pena. Todas prantearam seu destino. Compartilhavam de uma mesma certeza; a certeza de que um dia talvez seriam assassinadas por seus amados filhos. Quem sabe?
Passaram por corredores abarrotados de livros até chegarem aos fundos do prédio. Sozinhos, olharam diretamente nos olhos um do outro. Pela primeira vez naquela manhã, Acácio lhe falou:
- Belinda, minha mãe. Meus dias eram mais felizes ao seu lado. Cada dia que estive contigo a amei com todas as minhas forças e nunca imaginei que faria o que estou prestes a fazer.
Virando-se, o jovem Acácio segurou um pesado livro. Provavelmente uma enciclopédia ou algo do tipo. Apertou-lhe com todas as forças e disse:
- Você deve morrer! Aqui e agora!
Levantando a pesada arma, espancou violentamente aquela velha. As livradas eram certeiras. Cada livrada tornava sua alma mais leve. Livrou-se de seu fardo sem arrependimentos, sem errar cada golpe. Estava consumado!
Então a luz da saída lhe chamou. Segurando seu estimado livro, saiu para uma nova vida. Independente. Condenado à razão. Completo enfim.

                

quinta-feira, 18 de julho de 2013

CONTO #1 - Avesso Ideal

Avesso Ideal

Quando apenas infante, todo avesso que minha mente podia entender tinha a ver com as roupas espalhadas pela casa ao chegar da escola. O avesso não era nem feio nem bonito, era apenas fruto da distração. Porém, uma verdade era sagrada para mim: Sempre que meus pequenos olhos miravam o céu ao anoitecer, milhares de estrelas salpicavam a tenebrosa imensidão, criando um iluminado espetáculo - enquanto no velho sítio tudo era apagado e indistinguível. Você, querido leitor, já viu uma noite no campo? Poderia me atrever a descrevê-la como uma festa de luzes! Inspiração abundante para almas desbravadoras, corações apaixonados; verdadeira noção de superioridade. Gotas iluminadas com vida no oceano sombrio da eternidade. Podia jurar que as ouvia!
Nem percebi o tempo passar. Na verdade, quando se está correndo tudo passa célere e desprezado. Hoje sou adulto. No entanto, aprendi outro sentido para o avesso. Da janela do meu apartamento na Paulista pude ver o que minha pressa havia causado. Onde estavam as estrelas? Em seu lugar encontrava-se apenas escuridão e fumaça. Percebi que o brilho agora vinha de baixo - da cidade. Era esse o avesso da beleza? Ao invés do céu, a cidade cintilava. Luz fria e selvagem, estranhamente atraente, que exaltava toda a sujeira acumulada pela ganância e abafava o brilho do firmamento. Como pude trocar meus valores tão prestamente? A magia da noite continuava ali, escondida em algum lugar entre os arranha-céus e minha infância. Quem sabe seja eu que esteja do avesso? Ou quem sabe o segredo resida na canção do poeta que encontrou, em toda essa incoerência, o avesso do avesso do avesso?
Tal visão me inundou com certa desesperada confiança. O som do caos, o cheiro da carne em chamas, um retumbar que acompanha o ritmo de um coração descompassado. Eu, que sempre sonhara voar até as nuvens, agora mergulhava em busca do brilho perdido de outrora. Por um momento, o avesso estava do avesso - Acima estavam as estrelas enquanto em baixo estava a escuridão e a janela do meu quarto. Como estrela cadente seguia rumo à minha noite!
Meus olhos se fecham. Em minha mente apenas um desejo existe. Refulge, oh noite! Refulge novamente acima. Transfere tua majestade para a abóboda escura, ou pelo menos destrói a ironia. Substitui as luzes dos postes estáticos para os rostos de carne e osso que me cercam. Desta forma poderei ver meus irmãos desconhecidos brilharem - tal qual os velhos amigos do campo - banhados pela luz do luar. Avesso ideal.