A BREVE VIDA DE STELA
Quando tento me lembrar do nascimento de Stela, não consigo achar
nenhuma evidência de sobrenaturalidade. Apenas tragédia. Mas afinal, nascer não
é um milagre? Foi em uma noite tenebrosa, varrida por uma tempestade, que ela
nasceu. Não eram apenas os céus que se turbavam. Ali naquele pequeno hospital
de interior estava uma família sem nenhum recurso. Nenhuma esperança de criar
mais uma filha. Os pais dividiam-se entre a alegria de vislumbrar aqueles
lindos olhinhos escuros e a angústia de retornar para a casinha de taipa e
constatar que a comida acabou.
Entendo a
reação deles. Eu, que havia terminado meus estudos há pouco tempo e estava
vivendo o sonho do primeiro emprego como enfermeira, jamais negaria cuidar
daquela pequena princesa. Era considerada por minhas amigas como uma verdadeira
“manteiga”. Com a face banhada em lágrimas, a pobre mãe fez a proposta:
- Minha
filha... Cuide de minha filha! Não posso dar a ela um futuro. Por caridade,
fique com ela. Ajude-me...
Casos assim
acontecem com certa frequência. Mas nunca havia sido tão perto de mim, tão
pessoal. Confesso que fiquei encantada pelos olhos de Stela, que naquele
momento nem nome tinha. Foi tudo muito rápido. Em questão de horas estava eu,
chorando, no pátio do hospital, responsável por uma vida tão frágil. Mesmo
naquela situação de desespero, dei-lhe o nome de Stela.
- Seus
olhinhos são reluzentes! É o único brilho desta noite triste. Tal qual uma
linda estrela. Minha pequenina estrela.
Nunca mais
encontrei aquela família. Despediram-se sem olhar para trás, vagando pelas ruas
úmidas da cidade. Nem calçados aquela mãe tinha. Fiz questão de lhe dar os meus;
bem como todo o dinheiro que tinha na bolsa. Éramos eu, Stela, a cidade e uma
vida pela frente. Pensando bem, éramos apenas eu e Stela.
Aquela
garotinha me concedia certo contentamento que em nenhum outro lugar encontrava.
Vivi meus dias a me dedicar a ela. Participei de cada fase de seu crescimento e
esqueci até mesmo de mim mesma. O mais intrigante era a personalidade de Stela.
Sempre muito madura para sua idade. Sempre introspectiva, observadora,
incomodada. Seus comentários se tornavam cada vez mais profundos e acertados
sobre tudo que observava. Não foram poucas vezes que ouvi de amigos que se
tratava de uma “garota muito inteligente; oxalá superdotada”.
E era exatamente
o que me foi constatado pelos exames médicos e psicológicos. Alguma coisa
deveria estar errada. De tão altos, os resultados dos testes chegavam a ser
absurdos. Nada que eu já não sabia. Era minha adorável princesa, independente
de qualquer resultado científico.
Porém, o que
mais me desconcertava era a forma como Stela lia a vida. Isso mesmo! Ela lia
tudo a sua volta. Dizia-me: “Mamãe, posso ler tudo o que está a minha volta!”.
Tal habilidade lhe trazia muita tristeza. Era como se o mundo estivesse
disponível em um código compreensível para ela e oculto para nós. Cresceu
quieta, meditativa, sempre triste. Deus sabe o quanto tentei animá-la! Em
muitas ocasiões recebia a mesma resposta:
- Como
poderia ficar feliz com tanto caos e tristeza a minha volta?
Consequentemente,
ela não aguentou viver por muito tempo. Portanto, como tributo ao dom que recebi
de poder participar de sua breve passagem por aqui, tentarei contar as
principais impressões que ela teve durante suas caminhadas incertas. Pelo menos
aquelas das quais me recordo melhor. Acredito que minha pequena princesa era de
outro lugar. Era uma verdadeira estrela que desceu aos meus braços naquela
noite cinzenta.
Em uma manhã
de sol, caminhávamos para o parque. Stela olhou para cima e disse:
- Mamãe, a
fragilidade da vida nesse planeta é absurda! Chega a ser pavoroso como a
humanidade chegou até aqui. Somos pedacinhos perdidos de matéria espalhada e
ainda nos orgulhamos de alguma superioridade. Se cada um soubesse o quanto
custou para o universo se desenvolver da forma como está, teríamos outra forma
de civilização. Ninguém trataria o outro com desprezo pelas suas escolhas pessoais,
mesmo que fossem ideológicas, religiosas, comportamentais ou de qualquer outro
tipo. Tudo o que vejo são pessoas lutando umas com as outras por motivos
banais. Precisamos olhar mais para o universo.
Ao passar
pelas construções de nossa cidade, Stela comentava:
- Quanta
opulência! Que necessidade cega de se destacar. A senhora consegue entender o
quanto as pessoas tentam se sentir superiores às outras? Tudo isso para poder
garantir sua reprodução. Pessoas trabalham, se exercitam, ganham dinheiro,
adquirem coisas, cuidam da aparência, ganham cargos, status, estudam, se
esforçam... E por fim, tudo isso é para procriar com melhores chances de
sobrevivência. A humanidade é um grande rebanho de animais lutando dia e noite pela
continuação de sua espécie, sem nenhum tipo de consideração pelo mais fraco.
Tudo gira em torno disso: a economia, a religião, o proselitismo, o
patriotismo, o direito, a política, e qualquer ação humana.
Confesso que
a maioria de seus comentários me era incompreensível. Talvez aqueles que lerem
o que escrevo entenderão melhor. Gostaria de dizer que amava muito minha filha.
Tenho certeza que hoje ela está lá em cima, de onde veio, brilhando no espaço.
Nas noites em que me sinto mais solitária, é para lá que olho, na esperança de
vê-la novamente. Sempre me lembrando de suas últimas palavras:
- A vida é
um pequeno milagre, mamãe. Não perca tempo com fantasias criadas pelo medo.
Viva sua vida plenamente. Não permita que outros te dominem com suas linguagens
abusivas. Cada um é único nesse planeta. Cheguei à conclusão de que não existe
nada além do talento humano nessa vida. Se for para somar esforços conjuntos
pela evolução da humanidade, que isso seja feito sem mesquinharia nem
dominação. Mesmo que eu não consiga ver algum futuro para nossa civilização,
sei que qualquer esperança repousa sobre a tolerância e o conhecimento. Eu te
amo, minha mamãe. Obrigada por ser a minha estrela também!
E Stela fechou
seus olhos depois de ter aberto os meus.
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