quinta-feira, 18 de julho de 2013

CONTO #1 - Avesso Ideal

Avesso Ideal

Quando apenas infante, todo avesso que minha mente podia entender tinha a ver com as roupas espalhadas pela casa ao chegar da escola. O avesso não era nem feio nem bonito, era apenas fruto da distração. Porém, uma verdade era sagrada para mim: Sempre que meus pequenos olhos miravam o céu ao anoitecer, milhares de estrelas salpicavam a tenebrosa imensidão, criando um iluminado espetáculo - enquanto no velho sítio tudo era apagado e indistinguível. Você, querido leitor, já viu uma noite no campo? Poderia me atrever a descrevê-la como uma festa de luzes! Inspiração abundante para almas desbravadoras, corações apaixonados; verdadeira noção de superioridade. Gotas iluminadas com vida no oceano sombrio da eternidade. Podia jurar que as ouvia!
Nem percebi o tempo passar. Na verdade, quando se está correndo tudo passa célere e desprezado. Hoje sou adulto. No entanto, aprendi outro sentido para o avesso. Da janela do meu apartamento na Paulista pude ver o que minha pressa havia causado. Onde estavam as estrelas? Em seu lugar encontrava-se apenas escuridão e fumaça. Percebi que o brilho agora vinha de baixo - da cidade. Era esse o avesso da beleza? Ao invés do céu, a cidade cintilava. Luz fria e selvagem, estranhamente atraente, que exaltava toda a sujeira acumulada pela ganância e abafava o brilho do firmamento. Como pude trocar meus valores tão prestamente? A magia da noite continuava ali, escondida em algum lugar entre os arranha-céus e minha infância. Quem sabe seja eu que esteja do avesso? Ou quem sabe o segredo resida na canção do poeta que encontrou, em toda essa incoerência, o avesso do avesso do avesso?
Tal visão me inundou com certa desesperada confiança. O som do caos, o cheiro da carne em chamas, um retumbar que acompanha o ritmo de um coração descompassado. Eu, que sempre sonhara voar até as nuvens, agora mergulhava em busca do brilho perdido de outrora. Por um momento, o avesso estava do avesso - Acima estavam as estrelas enquanto em baixo estava a escuridão e a janela do meu quarto. Como estrela cadente seguia rumo à minha noite!
Meus olhos se fecham. Em minha mente apenas um desejo existe. Refulge, oh noite! Refulge novamente acima. Transfere tua majestade para a abóboda escura, ou pelo menos destrói a ironia. Substitui as luzes dos postes estáticos para os rostos de carne e osso que me cercam. Desta forma poderei ver meus irmãos desconhecidos brilharem - tal qual os velhos amigos do campo - banhados pela luz do luar. Avesso ideal.

Um comentário:

  1. Vejo a efemeridade de Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar, grandes efeitos, porém introspectivo... Apesar das autoras a quem o comparo não serem minhas favoritas, seu conto é profundamente agressivo e encantador...Me emocionou. Espero pelos próximos. Obrigada!Alda

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