sábado, 28 de dezembro de 2013

CONTO #8 - Tolices Perdoáveis

Tolices perdoáveis

                Faz trinta minutos ou mais que nenhum tiro era ouvido nas ruas abaixo. Finalmente os calos e as bolhas podiam ser sentidos em meus pés enterrados naquele imundo coturno. Quem me contemplasse naquele cômodo destruído jamais saberia diferenciar-me dos entulhos que me cercavam. De uma forma não poética, até mesmo meu coração estava misturado àquele monte de lixo.
            As únicas companhias que me haviam restado eram meu fuzil, carinhosamente apelidado de Grete, e o terço que minha mãe me dera no dia em que me despedi. Após tanta atrocidade, não sabia se acreditava ou não em algum ser superior. Mas em minha Grete eu acreditava! Ela era minha garantia de vida. Conhecia aquela arma tão profundamente que não me dava ao luxo de desperdiçar nenhuma munição. Cada projétil tinha alvo certo. Um homem que jamais veria novamente sua família; ou um jovem que nunca mais beijaria sua namorada ou um filho que não mais tornaria aos braços de sua mãe. Ironicamente, eu mesmo esperava voltar para casa e saborear novamente aquele Sauerkraut com salsicha e batatas tão batido e irrelevante que minha mãe fazia com pressa para que meu pai não chegasse para o almoço sem que sua refeição estivesse pronta. Talvez eu não merecesse mais tal luxo.
            Em toda a minha vida eu jamais havia deixado minha pequena cidade de Freiburg. Orgulhosamente a cidade mais ensolarada de toda a Alemanha. Contudo, a devastação que se seguiu ao bombardeio arrancou de minha terra sua formosura. Muitos de meus amigos de infância morreram instantaneamente, sem chances de revidar. Nenhum deles era a favor da campanha militar do Führer. Sofríamos calados pelo medo de sermos punidos pela polícia. Imagine: um grupo de jovens que sonhavam crescer jogando futebol e torcendo para nosso time da cidade, sem pretensões de território, raça ou riquezas, apenas o esporte e a diversão. Tudo se evaporou em 27 de Novembro de 1944. Nunca mais veria meus amigos e irmãos novamente.
            Resolvi dar uma resposta agressiva ao ocorrido. Alistei-me no exército e vali-me de meus conhecimentos de caça que me foram ensinados por meu pai na floresta negra para mostrar que existiam homens bravos em Freiburg. Porém, nesta noite sangrenta de inverno, já não sei o que é certo ou errado. Matei tantos soldados inimigos que, ao invés de sentir orgulho, sinto-me culpado e envergonhado. Não sou a favor do Führer, nem de suas ideologias; apenas queria vingança. Entretanto, tornei-me mais monstruoso que os responsáveis pelo bombardeio de minha cidade. Meu nome em meu uniforme estava ensanguentado. Por alguns segundos tentei me lembrar do dono daquele nome. Certamente eu não era mais o mesmo homem que o recebera ao nascer. Rodrigo era uma sombra de uma vida passada, marcada pela tragédia, incompleta e que não condescenderia com aquele atirador cruel que estava deitado ali, aguardando a hora de matar mais pessoas.
            Cuidadosamente, levanto-me para conferir o movimento das ruas. O meu corpo dolorido – instrumento de guerra – mal obedecia meus comandos. Com muita dificuldade averiguei que todos os meus companheiros de batalhão estavam mortos. A rua estava saturada de soldados franceses. Nada deteria a ocupação francesa agora. Em um futuro incerto, qual seria a melhor escolha a tomar? Render-me e voltar como um derrotado preso ou empreender um último ataque? Com minha destreza, certamente poderia matar mais uns três ou quatro inimigos antes do fim. Mas nenhuma morte havia aliviado a dor da perda de meus amigos de infância. Nem mesmo eu me reconhecia naquele uniforme nazista. Quem sou eu, afinal? No que eu havia me tornado? Abraço minha querida Grete e a recarrego lentamente.
            Haveria perdão para meus pecados nesse novo mundo que me aguardava? Minha inocência dissipara-se definitivamente. Jamais tornaria a ser o mesmo jovem sorridente que cantava nos bares, abraçava os companheiros após as partidas de futebol ou divertia-se com a irmã mais nova de poucos anos. Aquele jovem que varria a casa; cumprimentava todos os vizinhos e trazia calor ao coração de sua mãe havia morrido no meu primeiro tiro certeiro na guerra. Junto com meu inimigo, minha alma morrera. Daquele momento até agora apenas um fantasma existia; cumprindo ordens e abatendo vidas como se fossem animais da floresta negra. Não sentia mais nada. Não estava mais vivo. Era como uma peça de quebra-cabeça perdida em um canto, fora da caixa, não pertencendo a mais nada.
            A guerra não trazia recompensa alguma. Nenhuma compensação pela dor, nem sentimentos de altivez ou orgulho. Era pura estupidez mascarada em glorioso dever para com a pátria. Aprendi que a vida humana é sagrada e que melhor seria ter partido com meus amigos para o outro mundo do que fazer parte daquele teatro de horrores. Porém, era tarde demais para consertar qualquer coisa. Uma atitude me era requisitada pelo meu coração. Decidi fazer o que era melhor.
            Deixei aquela construção com meu fuzil empunhado e gritei alto, atirando para o céu:
            - Ich tot bin mit meinen Freunden!
            O que se seguiu foram diversos tiros. Não sei quantos me acertaram, pois eu já não sentia dor alguma. Minha última recordação foi da luz do poste que cintilava, igual o sol que nos aquecia nas tardes de jogo, antecedendo as graciosas risadas e sonhos que tornavam minha vida significativa. Encontrei na morte a compensação da injustiça sofrida e tombei com o sorriso que há muito havia esquecido em minhas memórias. De tudo que realizei na guerra, essa foi a minha única tolice perdoável.


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