Tolices perdoáveis
Faz trinta minutos ou mais que nenhum tiro era ouvido
nas ruas abaixo. Finalmente os calos e as bolhas podiam ser sentidos em meus
pés enterrados naquele imundo coturno. Quem me contemplasse naquele cômodo
destruído jamais saberia diferenciar-me dos entulhos que me cercavam. De uma
forma não poética, até mesmo meu coração estava misturado àquele monte de lixo.
As únicas companhias que me haviam
restado eram meu fuzil, carinhosamente apelidado de Grete, e o terço que minha
mãe me dera no dia em que me despedi. Após tanta atrocidade, não sabia se
acreditava ou não em algum ser superior. Mas em minha Grete eu acreditava! Ela
era minha garantia de vida. Conhecia aquela arma tão profundamente que não me
dava ao luxo de desperdiçar nenhuma munição. Cada projétil tinha alvo certo. Um
homem que jamais veria novamente sua família; ou um jovem que nunca mais
beijaria sua namorada ou um filho que não mais tornaria aos braços de sua mãe.
Ironicamente, eu mesmo esperava voltar para casa e saborear novamente aquele Sauerkraut com salsicha e batatas tão batido e irrelevante que minha mãe fazia com
pressa para que meu pai não chegasse para o almoço sem que sua refeição
estivesse pronta. Talvez eu não merecesse mais tal luxo.
Em toda a minha vida eu jamais havia
deixado minha pequena cidade de Freiburg. Orgulhosamente a cidade mais
ensolarada de toda a Alemanha. Contudo, a devastação que se seguiu ao
bombardeio arrancou de minha terra sua formosura. Muitos de meus amigos de
infância morreram instantaneamente, sem chances de revidar. Nenhum deles era a
favor da campanha militar do Führer. Sofríamos calados pelo medo de sermos
punidos pela polícia. Imagine: um grupo de jovens que sonhavam crescer jogando futebol
e torcendo para nosso time da cidade, sem pretensões de território, raça ou
riquezas, apenas o esporte e a diversão. Tudo se evaporou em 27 de Novembro de
1944. Nunca mais veria meus amigos e irmãos novamente.
Resolvi dar uma resposta agressiva
ao ocorrido. Alistei-me no exército e vali-me de meus conhecimentos de caça que
me foram ensinados por meu pai na floresta negra para mostrar que existiam
homens bravos em Freiburg. Porém, nesta noite sangrenta de inverno, já não sei
o que é certo ou errado. Matei tantos soldados inimigos que, ao invés de sentir
orgulho, sinto-me culpado e envergonhado. Não sou a favor do Führer, nem de
suas ideologias; apenas queria vingança. Entretanto, tornei-me mais monstruoso
que os responsáveis pelo bombardeio de minha cidade. Meu nome em meu uniforme
estava ensanguentado. Por alguns segundos tentei me lembrar do dono daquele
nome. Certamente eu não era mais o mesmo homem que o recebera ao nascer.
Rodrigo era uma sombra de uma vida passada, marcada pela tragédia, incompleta e
que não condescenderia com aquele atirador cruel que estava deitado ali,
aguardando a hora de matar mais pessoas.
Cuidadosamente, levanto-me para
conferir o movimento das ruas. O meu corpo dolorido – instrumento de guerra –
mal obedecia meus comandos. Com muita dificuldade averiguei que todos os meus
companheiros de batalhão estavam mortos. A rua estava saturada de soldados
franceses. Nada deteria a ocupação francesa agora. Em um futuro incerto, qual
seria a melhor escolha a tomar? Render-me e voltar como um derrotado preso ou
empreender um último ataque? Com minha destreza, certamente poderia matar mais
uns três ou quatro inimigos antes do fim. Mas nenhuma morte havia aliviado a
dor da perda de meus amigos de infância. Nem mesmo eu me reconhecia naquele
uniforme nazista. Quem sou eu, afinal? No que eu havia me tornado? Abraço minha
querida Grete e a recarrego lentamente.
Haveria perdão para meus pecados
nesse novo mundo que me aguardava? Minha inocência dissipara-se
definitivamente. Jamais tornaria a ser o mesmo jovem sorridente que cantava nos
bares, abraçava os companheiros após as partidas de futebol ou divertia-se com
a irmã mais nova de poucos anos. Aquele jovem que varria a casa; cumprimentava
todos os vizinhos e trazia calor ao coração de sua mãe havia morrido no meu
primeiro tiro certeiro na guerra. Junto com meu inimigo, minha alma morrera.
Daquele momento até agora apenas um fantasma existia; cumprindo ordens e
abatendo vidas como se fossem animais da floresta negra. Não sentia mais nada.
Não estava mais vivo. Era como uma peça de quebra-cabeça perdida em um canto,
fora da caixa, não pertencendo a mais nada.
A
guerra não trazia recompensa alguma. Nenhuma compensação pela dor, nem
sentimentos de altivez ou orgulho. Era pura estupidez mascarada em glorioso
dever para com a pátria. Aprendi que a vida humana é sagrada e que melhor seria
ter partido com meus amigos para o outro mundo do que fazer parte daquele
teatro de horrores. Porém, era tarde demais para consertar qualquer coisa. Uma
atitude me era requisitada pelo meu coração. Decidi fazer o que era melhor.
Deixei aquela construção com meu
fuzil empunhado e gritei alto, atirando para o céu:
- Ich tot bin mit meinen
Freunden!
O que se seguiu foram diversos tiros. Não sei quantos
me acertaram, pois eu já não sentia dor alguma. Minha última recordação foi da
luz do poste que cintilava, igual o sol que nos aquecia nas tardes de jogo,
antecedendo as graciosas risadas e sonhos que tornavam minha vida
significativa. Encontrei na morte a compensação da injustiça sofrida e tombei
com o sorriso que há muito havia esquecido em minhas memórias. De tudo que realizei na guerra, essa foi a minha única tolice perdoável.
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