Metamorfose
Acácio
acordou diferente naquela manhã fria e cinzenta. Seus olhos ainda estavam
inchados pelas lágrimas que vertera durante a noite. Porém estava determinado:
Hoje, matarei minha mãe!
Você,
amigo leitor, deve estar sentindo repulsa aos sentimentos daquele jovem. Eu
teria a mesma reação. Mas, convenhamos; aquela velha precisava morrer! Deitada
na mesma cama de Acácio, logo acordou e o encarava com olhos pretos, profundos,
arrebatadores. Um arrepio percorreu-lhe a espinha e o fez lembrar que ela ainda
estava lá. Vigiando.
Certamente
a presença dela lhe trazia conforto. Jamais se sentira sozinho ou sem
respostas. Quando algo não lhe fazia sentido, a velha sempre dava os melhores
pitacos. Ela detestava qualquer tipo de tecnologia, pois se considerava uma
senhora de “um livro só”. O menino jamais ousou questionar, pois as respostas sempre
lhe eram apresentadas como sagradas por ela. Não havia tempo para críticas,
reflexões ou tristeza: Nas horas mais escuras, a velha lhe estendia os braços e
lhe fazia ninar. Como ele amava aquela senhora! Mas estava resoluto em matá-la.
Saiu
da cama com pressa. Vestiu sua melhor roupa e, como sempre fazia, convidou-a
para passear. Nem pensou em comer seu desjejum. A fome se lhe passou
despercebida dado tamanha ansiedade que tinha em por fim ao seu sofrimento. A
velha paramentou-se com seus tecidos escuros, esfarrapados, que a faziam parecer-se
com um fantasma. Portava um enorme crucifixo de metal que se destacava sobre os
vestidos pesados. Não cansava de cuidar de seu filho. Fê-lo rezar ao seu lado e
ler o livro sagrado. Mas naquela manhã monocromática, as palavras escapavam
pela boca do jovem sem nenhum comprometimento.
Ambos
deixaram a velha casa de mãos dadas. Apoiando-se sobre o ombro de seu filho,
aquela senhora fitava os transeuntes com desconfiança. Conforme caminhavam até
seu destino, afloravam os mais diversos sentimentos por onde passavam. As
crianças que jogavam sua bola na rua assustaram-se ao vê-la. Respeitaram sua
passagem com pavor – esqueceram até mesmo da alegria do jogo. Os rapazes nem
olhavam direito para ela, apesar de seus gritos os incomodarem com duras repreensões.
Os idosos sentiam orgulho do jovem Acácio, saudando-o com alegria. Contudo seus
semblantes pesavam cansados, expressão de um fardo incontestado. Os sacerdotes da pequena igreja lhes sorriam,
rangendo os dentes, esfomeados. Aquela visão fez o jovem ter mais certeza do
que faria. Ninguém ficava indiferente diante da velha.
Enfim
chegaram às portas da Biblioteca municipal. Em sua mente, Acácio sabia que o
único lugar discreto para dar fim àquela mulher seria os fundos do prédio. Era
calmo e abandonado – perfeito para o assassinato. O mesmo lugar que passara
suas últimas tardes lendo.
Segurou
gentilmente as mãos da velha e lhe ajudou a subir as escadarias. Ao entrarem,
passaram despercebidos dos leitores. Todos estavam concentrados em suas
leituras. Muitos estavam acompanhados de suas mães ou pais, mas poucos estavam
sozinhos. As mães olharam para a velha e sentiram pena. Todas prantearam seu
destino. Compartilhavam de uma mesma certeza; a certeza de que um dia talvez
seriam assassinadas por seus amados filhos. Quem sabe?
Passaram por
corredores abarrotados de livros até chegarem aos fundos do prédio. Sozinhos,
olharam diretamente nos olhos um do outro. Pela primeira vez naquela manhã,
Acácio lhe falou:
- Belinda,
minha mãe. Meus dias eram mais felizes ao seu lado. Cada dia que estive contigo
a amei com todas as minhas forças e nunca imaginei que faria o que estou
prestes a fazer.
Virando-se, o
jovem Acácio segurou um pesado livro. Provavelmente uma enciclopédia ou algo do
tipo. Apertou-lhe com todas as forças e disse:
- Você deve
morrer! Aqui e agora!
Levantando a
pesada arma, espancou violentamente aquela velha. As livradas eram certeiras.
Cada livrada tornava sua alma mais leve. Livrou-se de seu fardo sem
arrependimentos, sem errar cada golpe. Estava consumado!
Então a luz da
saída lhe chamou. Segurando seu estimado livro, saiu para uma nova vida.
Independente. Condenado à razão. Completo enfim.
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